AS
ORIGENS:
Meus
filhos, muitos sobrinhos e alguns amigos
têm insistido para que eu escreva
sobre episódios e historias de nossa
família. Dizem que seria pena que
se perdesse o que chamam “a memória”
de nossa gente.
Como se eu fosse o repositório da
crônica familiar e o único
capaz de rememorar os nossos “feitos”.
Outros já os poderiam ter posto no
papel. Por que meu Pai, meus tios ou mesmo
meus primos não o fizeram? Não
sei.
A eles, sem dúvida, sobravam o engenho
e arte que a mim certamente faltam.
É verdade que hoje sou o decano,
em linha masculina, dos Mendes Gonçalves.
E se alguém tivesse que gravar as
nossas reminiscências seria eu, não
“par droit de conquête”
mas, certamente, “par droit de vieillesse!”.
Vou
atender aos apelos, muito embora me faltem
para tanto o engenho e arte a que me referi.
Mas
como começar? Por ordem cronológica,
crescente ou decrescente ? Por ordem de
importância? Por ordem de interesse
? Ou sem ordem nenhuma ?
Penso
impor ao relato a ordem cartesiana que a
minha formação exige. Sem,
contudo esquecer os conselhos de Pascal,
sorrir sempre e, se possível, gargalhar...
Diziam
que a origem conhecida dos Mendes Gonçalves
ou dos Gonçalves chegaria a Pepino,
dito o Breve, Carlos Martelo seu Pai e,
em conseqüência, a Carlos Magno,
seu filho. ...
Outros dizem que seriam descendentes de
D. Gonçalo, o Zarco (caolho) descobridor
da Ilha da Madeira.
Não há qualquer prova, apenas
meu nariz muito se assemelha ao de Dom Gonçalo,
em sua estatua em Funchal...
Documentos,
transcritos do “Elucidário
Madeirense”, dão conta de que
os Gonçalves do Campanário
procedem de Francisco Gonçalves casado
em 1595 com Francisca também Gonçalves,
etc., etc.
Entre seus quintos netos, que viveram no
final do século XVIII, está
Dona Justina (não será Dona
Leocádia? Creio que sim) Gonçalves
de Andrade que se casou com o Dr. Antonio
Joaquim (ou José Ricardo) Mendes
de Freitas. O nome Mendes Gonçalves
vem da união entre os Gonçalves
de Andrade e os Mendes de Freitas.
Tia
Virginia falava muito das tias Justiniana
e Constantina ... Quem seriam? Nunca saberemos?
Irmãs de seu Pai, talvez. Filhas
de Vovó Leocádia ?
O 5º Bispo de São Paulo, Manoel
Joaquim Gonçalves de Andrade (+ 1847),
que está sepultado na Cripta da Catedral
de São Paulo, era irmão de
Leocádia Carolina Gonçalves
de Andrade (minha tataravó, (* 1802
+ 1898) que repousa no Cemitério.
da Consolação)
Dois
sobrinhos do bispo, a seu conselho, foram
para São Paulo tentar a vida, já
que a Madeira pouco poderia oferecer.
Um
deles foi o que se tornou Professor Catedrático
de Direito Civil da Faculdade de Direito
de São Paulo, onde há uma
sala com seu nome, Francisco Justino Gonçalves
de Andrade.
Muito culto, estudioso, de grande saber
e muitas virtudes, se notabilizou como o
primeiro grande civilista brasileiro.
Era homem de vastos conhecimentos, brilhante
talento, inquebrantável austeridade
de caráter, princípios morais
rígidos.
Cultivava grande amizade com o Imperador
D. Pedro II, que lhe fez Conselheiro do
Império, o que lhe valeu ser jubilado,
ao ser proclamada a República. Nascido
em 1821 veio a falecer em 1902.
Seu
irmão e companheiro de viagem, o
Cônego João Jacinto Gonçalves
de Andrade, também chegou a ser lente
da Faculdade de Direito, sem nunca, no entanto,
ter abandonado suas funções
eclesiásticas.
Corre
na família, que o Cônego apreciava
muito a vida mundana e que seu irmão
o Professor Justino, muito recatado, ao
contrário, levava vida ascética,
recolhida, sempre a estudar.
Quando recebia, por acaso, alguma visita
feminina dela se esquivava, dizendo; “procure
meu irmão, o Cônego, ele é
que entende de” rabos de saia”.
Em
tempo: houve outro eclesiástico,
parente, Joaquim Manoel Gonçalves
de Andrade, o que foi, por duas vezes, presidente
da Província de S. Paulo, por volta
de 1875. Este quem seria? Qual o seu lugar
na arvore?
O
bispo D. Manoel Joaquim exerceu por três
vezes, em 1830 +/-, a presidência
da Província de São Paulo
e foi um operoso administrador da Diocese
de São Paulo.
.
A propósito dos Gonçalves
do Campanário e da Ilha da Madeira,
nosso primo Carlos Lacerda, que governou
a Guanabara, grande tribuno, dos maiores
oradores que passaram pelo Congresso Nacional,
visitou a Ilha em busca de suas raízes.
Contava
Carlos Lacerda que, acometido de súbita
dor de dentes, procurou um dentista e, conversa
vai conversa vem, descobriu ser ele um Gonçalves
e seu primo.
Aliás, encontrar primos na Madeira
é tarefa fácil para os Gonçalves
do Brasil, pois é a família
mais numerosa da Ilha.
Haja vista que um dos nossos antepassados,
o Tenente Antonio Sebastião Gonçalves
de Andrade teve 24 filhos com Francisca
Maurilia Mendes, sua mulher!!!
Leocádia a tataravô teve onze
filhos.
Carlos Lacerda, pelo lado materno, era bisneto
de Maria Emilia Gonçalves de Andrade,
sobrinha, entre outros, de Leocádia
Gonçalves de Andrade e do Bispo D.
Manoel Joaquim; daí o seu parentesco
com os Mendes Gonçalves.
Sempre pensei ser Maria Emilia irmã
de Leocádia mas em seu livro “A
Casa de Meu Avô”, Carlos Lacerda
diz que ela era prima do Tio Francisco e
vieram juntos para o Brasil.
Em
almoço em Paris, com o Carlos Lacerda
este me pediu para dizer o que sabia a respeito
do Chanoîne-Cônego, pois tinha
notícia de uma sua passagem por Vassouras,
onde exerceu suas funções
religiosas.
Os Lacerdas são de Vassouras, no
Estado do Rio, o que pode explicar a estada
do Cônego nessa cidade.
Quando,
em visita à Madeira, Gloria Zita
e eu estivemos no Arquivo do Funchal e pesquisamos,
nos livros do Tombo, os Gonçalves
de Andrade.
Tarefa difícil foi compulsar livros
dos séculos XVII e XVIII, com centenas
de nomes.
Mas Gloria Zita teve uma idéia: folhearmos
os livros de assentamento de batismos, casamentos
e nascimentos, não nos detendo nos
registros assinados em cruz, ou seja, de
analfabetos.
Argumentava que a família, letrada
que era, não estaria entre os que
assinavam em cruz.
Isto facilitou a pesquisa e logo encontramos,
não sem emoção, registros
de batismos e nascimentos de membros da
nossa grande estirpe madeirense.
(Outra dificuldade é a repetição
de nomes, em mais de uma geração,
tais como Antonio Joaquim, Joaquim Antonio,
Manoel Joaquim, Joaquim Manoel, Joaquim
Ricardo, etc.)
O
BRASIL:
Foi
o Bispo D. Manoel Joaquim quem também
convenceu Ricardo Antonio Mendes Gonçalves,
seu sobrinho, primo, portanto, de Justino
e do Cônego, a vir para o Brasil,
onde teria um futuro mais promissor, em
um país novo com grandes possibilidades.
Ricardo
veio para o Brasil estabelecendo-se no comercio
no Rio de Janeiro, e foi muito bem sucedido.
.
Em 1853, falecendo seu Pai, José
Ricardo Mendes de Freitas, fez vir de Portugal
sua mãe, Leocádia e os irmãos
que passaram a residir com ele no Rio de
Janeiro, onde foram criados e estudaram
todos os Mendes Gonçalves.
Entre
os irmãos de Ricardo um dos mais
jovens era Francisco que veio, com o irmão,
a fundar a Cia. Matte Larangeira.
Tio Jose Maria foi outro dos irmãos,
engenheiro sanitarista que dizia: “no
Brasil há dois engenheiros que entendem
de água e esgoto, o Saturnino de
Brito e eu; o Saturnino de Brito aprendeu
comigo”.
Cabe
aqui resumir a historia de Dom Ricardo,
nosso bisavô:
Deflagrada a guerra do Paraguai, Ricardo
acompanhou o Exército brasileiro,
na qualidade de fornecedor dos exércitos
imperiais, levando como ajudante Tio Francisco,
que teria seus 20 ou 22 anos.
Na campanha tiveram a idéia de um
empreendimento comercial para desenvolver
o intercambio de produtos extrativos e agrícolas
entre Brasil, Paraguai e Argentina.
A idéia foi concretizada, logo após
a guerra, em sociedade com Thomaz Larangeira,
obtida do Governo Imperial uma concessão
de terras no Mato Grosso, como retribuição
aos “relevantes serviços prestados
à coroa”.
Era
a criação da Companhia Matte
Larangeira que fundou cidades – Porto
Mendes – formou fazendas – Campanário
-, desenvolveu a navegação
fluvial no Rio Paraná e, por muitas
outras iniciativas, contribuiu decisivamente
para o progresso de toda a região
do Sul de Mato Grosso e do Paraná.
Penso que a Matte foi a primeira empresa
multinacional da América Latina –
Brasil, Argentina e Paraguai.
Tio
José Maria, creio, era o mais moço,
pai do Carlitos Mendes Gonçalves,
este pai da Dinah (Maria Ricardina ) que
foi casada com o Prof. Canuto Mendes de
Almeida e depois com o Luiz Lopes Coelho.
Sobre o Carlitos, saudoso Carlitos, também
boêmio, também inteligente,
mais adiante contarei algumas passagens.
Estão todos no Cemitério da
Consolação, muito perto uns
dos outros, na Rua 20, com vista para o
jazigo de Dona Leocádia.
Dom
Ricardo, (depois de algumas tentativas interrompidas
–Dolores Vega) casou, em segundas
núpcias, no Paraguai, onde foi viver,
após a viúves no Brasil.
A família paraguaia é numerosa
e cito alguns: o Manoel Ricardo M.G, que
conheci em Assunção, a Beba,
a Inês que dizia em portonhol: “nada
nos resta de la antigua opulência”.
No
Paraguai, Dom Ricardo foi cidadão
atuante, respeitado, mecenas, patrocinador
das artes e das letras. Faleceu em 8 de
junho de 1901 e está sepultado no
Cemitério da Recoleta em Assunção.
Do
primeiro casamento no Brasil teve dois filhos
Vovô Eduardo e a célebre Tia
Virginia de quem ainda falaremos mais adiante.
Sabem
todos que temos uma grande parentela, bem
próxima, no Paraguai e, também
na Argentina, pois o tio Francisco, radicado
em Buenos Aires, casou duas vezes e teve
numerosa prole.
Entre seus netos temos a nossa querida Elvirita
Amaral e o não menos querido Luis
Prates.
Devo
citar ainda outro irmão do Vovô
Ricardo, o Tio Antonio, pai do Heitor e
do Mario M.G. parentes do Mato Grosso, e
avô de Fernando Jorge e de Arlete,
grande amazona. Quem tem mais dados desse
ramo dos M.G. é a Maria Russel, irmã
da Venturinha, netas de
Tia Maricota. Nenê que era Ramos Antunes,
filha de tia Maricota, e se casou, como
Mamãe, com um Mendes Gonçalves,
do pessoal de Mato Grosso, Américo.
E
ainda outro irmão de D. Ricardo que
foi para o Chile e de quem nunca se teve
noticia. Será que lá deixou
descendência? Devo falar no Tio Jango
que morreu em São José dos
Campos, ao que consta, voluntariamente.
Nosso
antepassado direto é o Comendador
da Ordem de Aviz de Portugal Dom Ricardo
Antonio Mendes Gonçalves.
De
seus descendentes e colaterais brasileiros
vou tratar de agora em diante.
O
AVÔ – OS TIOS e algumas histórias:
Eduardo Mendes Gonçalves, primogênito
de Ricardo, era engenheiro, pela Escola
Central do Rio de Janeiro.
Vovô Eduardo, mal formado foi trabalhar
na construção da famosa Estrada
de Ferro Paranaguá-Curitiba, tendo
chefiado um dos sectores da grande obra.
Teve
destacada atuação política
a favor da República, fundando, em
Curitiba, o jornal “A Republica”,
que defendia os ideais republicanos e do
qual foi redator.
Ardoroso republicano, ainda foi Presidente
do Clube Republicano do Paraná, que
congregava os partidários das idéias
positivistas de Ordem e Progresso.
Proclamada
a Republica, foi eleito deputado à
Constituinte de 1891, ocupando a 4ª.
Secretaria da Mesa, ao lado de Francisco
Glicério, Prudente de Morais, Saldanha
Marinho, Borges de Medeiros e tantos outros
lideres da época.
Sua
carreira política, contudo, não
prosseguiu por muito tempo, pois, como muitos
outros companheiros, os chamados republicanos
históricos, logo se apercebeu não
ser aquela “a Republica de seus sonhos”.
Foi
em Curitiba que conheceu e se casou com
Julieta Ramos, de velha família paranaense,
uma das sete belas irmãs Ramos.
Abandonada
a carreira política, voltou a dedicar-se
à engenharia, tendo antes, em Ribeirão
Preto, formado fazenda de café que
não resistiu aos efeitos de geadas
ocorridas em fins do século XIX,
mais precisamente em 1895.
Em Ribeirão Preto nasceram seus filhos
Roberto e Annibal
Engenheiro
atuante foi responsável por obras
de vulto em São Paulo. Algumas, executou
em parceria com Ramos de Azevedo, o famoso
arquiteto da época.
A família de Vovô Eduardo e
Vovó Julieta tinha seis filhos varões:
Ricardo, Luiz, Asdrúbal, Annibal,
Roberto e Amílcar; uma filha, Maninha,
faleceu ainda criança.
Cada
um deles tem uma história que merece
ser contada.
Ricardo,
o tio Ricardito, poeta, repentista inspirado,
foi o que melhor traduziu em versos a nossa
alma cabocla brasileira.
Sua Cisma do Caboclo tem lugar de destaque
em todas as antologias da literatura brasileira.
“A casa onde mora aquela menina”
era, ou é ainda, recitada em quase
todas as escolas primarias do país.
Companheiro
de Monteiro Lobato, no célebre Minarete,
seu livro póstumo, Ipês, dele
mereceu primoroso prefácio, verdadeiro
hino à amizade que os uniu.
A Barca de Gleyre, que reúne a correspondência
de Lobato com Godofredo Rangel, é
dedicada a três pessoas, entre as
quais, Ricardito, o Inesquecível!
Boêmio,
muitos de seus versos eram escritos nos
mármores das mesas dos bares que
freqüentava, sempre seguido por uma
corte de amigos e admiradores que recolhiam
as belas rimas de sua inspiração.
Idealista,
romântico, liderou greves, lutou pelos
humildes, compôs versos inflamados
contra os poderosos e as injustiças
sociais.
Eterno
apaixonado morreu aos 33 anos vítima
do amor, romântico que sempre foi.
Vovó
Julieta, na mesa de cabeceira, sempre conservou,
ao lado de seu retrato, um ramo de violetas.
Tio
Luiz, o “Bolacha” dos campos
do Velódromo e do Paulistano. O expansivo
e emotivo Tio Luiz, o Luigi Vampa que a
todos fascinava com seu humor e sua exuberância,
o grande astro de vatapás inesquecíveis.
O
tio até hoje lembrado pelos sobrinhos,
saudosos dos tempos da Rosa e Silva e da
Peruibe.
O tio das histórias jocosas que contava
com tanta verve.
Contavam
(ouvi de meu Pai) que chegou a manter um
restaurante, ou dele era sócio, parece-me
em Santa Cecília, que ficou famoso
por um beef, mal passado evidentemente,
delicioso, servido com uma bolinha de manteiga
coberta de salsinha.
Receita que ensinou à minha Mãe
e que até hoje em casa reproduzimos.
Certa
ocasião encontrou-se Tio Luiz com
um amigo e o convidou para tomar um chope
em bar próximo. O amigo disse-lhe
que não podia, pois iria comer um´beef
“espetacular em um restaurante em
Santa Cecília.
Tio Luiz riu-se muito e respondeu: “não
vá, pois hoje não tem beef”.
– “Como você sabe?”
- “Porque o cozinheiro está
de folga. Sou eu ...”
Contava
seus casos e anedotas e ria, ria tanto,
que ficava sem ar, tossindo ofegante.
Recordo
a Suavita, que foi a precursora dos desodorantes
de hoje. Além da Suavita fabricava
perfumes muito bons.
O
Tio Luiz, inteligente como poucos, que amou
a vida como poucos, morreu feliz, com grande
idade, após ter comprado no mercado
os pertences para um vatapá que iria
preparar.
Tio Asdrúbal, o Bibi, centro avante
do Paulistano, cujo chute era o pavor do“goalkeepers”
adversários.
Retraído, escondia seu saber profundo
e enciclopédico com modéstia
exemplar.
Tinha grande sensibilidade.
A propósito lembro-me, quando do
falecimento de Vovó Julieta em Santos,
sua tristeza, seu desespero, saindo na madrugada
fria, chorando, vagando pelas praias do
Boqueirão.
Foi
talvez o mais culto dos irmãos; poliglota,
brilhante tradutor da Editora Martins e
das Memórias de Churchill, publicadas
no Estadão.
Tio
Asdrúbal preparou-me para os exames
de admissão ao Ginásio de
São Bento.
Em poucos meses, na Rua Paraguaçu,
nas Perdizes, onde morava, transmitiu-me
seu vasto conhecimento de Historia, Geografia,
Ciências, Matemática, Português.
Os bons resultados foram fruto de sua dedicação
e preparo incomparáveis.
Tio
Asdrúbal que tão cedo nos
deixou, transmitiu seu imenso carinho ao
filho Ruy que tanto amou. O primo caçula
Ruy, o dinâmico e competente administrador
que transformou a Saraiva em uma das mais
importantes editoras brasileiras.
Tio Roberto Outro grande futebolista, do
quinteto de ataque do Paulistano, os então
famosos cinco irmãos.
Foi distinto aluno da École de Sciences
Politiques de Paris, a conhecida Sciences
Po.
Aplicado,
preparado, foi diplomata que honrou a tradição
do Itamaraty.
De princípios inabaláveis,
foi preterido na carreira por ter sido Secretario
do Presidente Washington Luiz, fato que
o ditador Vargas jamais perdoou.
Muito
se orgulhava de ser diplomata por concurso,
sem proteção, como era de
hábito na época.
Autor
e compilador de Um Diplomata na Corte de
São Cristóvão, tradutor
de Os Japoneses São Assim e autor
de memórias em 40 Anos de Champanhe,
soube, como poucos, ilustrar as missões
que lhe foram confiadas, seja no Instituto
Rio Branco, no Departamento Cultural, seja
nas Embaixadas do Japão, Finlândia,
ou nos postos que ocupou na Europa e na
América.
E
tinha o charme e a simplicidade dos irmãos
e dos Mendes Gonçalves.
Quando
nos visitava era sempre um acontecimento.
Ficava hospedado na casa de meus Pais e
dizia para “taquiner”: “se
come muy ien en la casa del señor
Annibal, pero se bebe muy mal”.
De fato, meu Pai não era um amador
de vinhos; gostava sim de uma boa cerveja,
(lembranças da Bélgica, onde
viveu) e da batida de limão, antecessora
da caipirinha, que Mamãe preparava
com maestria.
Mas a comida orientada por Mamãe
era soberba e, para o tio, sempre ausente,
saudoso do sabor brasileiro, uma delicia.
Pois Tio Roberto era um refinado “gourmet”
Certa
vez no Carnaval emprestou-me o apartamento
da Ruy Barbosa por uns dias. Pretendendo
ir ao baile do Municipal e não tendo
fantasia, procurei e encontrei nos armários
do Embaixador, um belíssimo kimono
de seda, com inscrições em
japonês.
Não tive dúvida, enverguei
o kimono e parti para o baile. Já
dançando no cordão, vejo um
senhor japonês de smoking, que se
curvava, saudando-me com muita reverência..
Fiquei intrigado e, procurando saber quem
era, disseram-me ser o Embaixador do Japão
no Brasil.
Mais tarde, por Tio Roberto, que não
gostou muito de minha ousadia em apropriar-me
do kimono, soube que a peça era presente
do Imperador Hiroito e as inscrições
referiam-se ao alto nível hierárquico
daquele que o portava. Explicavam-se, assim,
os respeitosos cumprimentos do Embaixador.
.Tinha
muito espírito e dava sonoras gargalhadas.
É conhecida a historia de uma visita
que fez a uma boite de homo-sexuais em Buenos
Aires. Ao chegar, deparou-se com um porteiro
enorme, com um bigode ainda maior..
Não se conteve e perguntou: ‘?
Usted tambien es?”Ao que o”costaud”
respondeu, com um vozeirão:”
E por que non señor ?”
Todos
aprendemos muito com o Tio Roberto. Lembram-se
do cachorrinho que também falava
português?
Uma
vez na Áustria, em passeio à
Baviera, disse-me e ao Álvaro Campos,
que viajava comigo: “se vocês
amanha, às 9 horas, não estiverem
prontos e barbeados, não iremos visitar
o Ninho da Águia, de Hitler, em Berchtesgaden”.
Não deu outra: atrasamos e aparecemos
com a barba por fazer.
Perdemos o passeio, mas aprendi a importância
de ser pontual e de bem me apresentar.
Tínhamos
muita intimidade com Tio Roberto, como,
aliás, com todos os tios.
Enfim,
era um grande “causeur” e a
todos encantava. Encantamento que até
hoje perdura ao nos recordarmos das passagens
em sua companhia.
Tio
Amilcar Era o caçula dos irmãos
e também futebolista de mão
cheia (aliás,de pé cheio)
Era o Causinho, como o chamava Vovó.
Advogado pela Faculté de Droit de
Paris, sempre cultivou a França,
sua língua e sua cultura.
Chevalier de la Legion d´Honneur et
des Palmes Académiques, foi Presidente
da Aliança Francesa de Santos.
Presidiu por muitos anos o Rotary Clube
de São Paulo.
Cidadão
prestante, de alto espírito associativo,
tinha conduta irrepreensível sob
todos os aspectos e rigidamente obedecia
aos preceitos éticos da advocacia.
Esportista
militante do Tênis Clube do Santos,
do qual parece-me que foi Presidente, foi
a raquete numero um da cidade e nos contava
que só deixou de ser quando surgiu
um japonês Fujikura, que ganhava todas.
È
conhecido o episódio em que, tendo
substituído, em uma causa, um colega
que viajara e por isso impedido de atuar,
recebeu do cliente um cheque, correspondente
aos honorários advocatícios.
Imediatamente remeteu ao colega uma carta,
dizendo que não lhe cabia receber
por uma causa que não era sua e que
por isso encaminhava o cheque recebido.
Era o seu estilo de elegância e correção.
Sempre
que em Paris passamos pela Rue des Ecoles
dirijo um pensamento ao Tio Amílcar
que foi um modelo para todos nós.
-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-
Baby
Almeida, mulher do Príncipe dos Poetas,
Guilherme de Almeida, contou-nos que conhecera
os Mendes Gonçalves em Biarritz,
que eram os moços mais bem educados
que até então havia encontrado.
-.-.--.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-
Dirão,
porque foram todos para a Europa estudar?
Não
foram todos. Ricardito e Luiz não
foram, por motivos diversos.
Ricardo,
já cursando a Faculdade de Direito,
com intensa vida literária e acadêmica,
ficou em São Paulo.
Luiz, noivando com Tia Sylvia e trabalhando
com o Pai, também ficou.
Eram os mais velhos e já encaminhados.
Mas
porque os outros foram ?
Sabem
todos que os “meninos” eram
grandes jogadores de football, que aprenderam
no Velódromo (atual Praça
Roosevelt) e depois no Paulistano.
Eram obcecados pelo esporte, tendo sido
campeões paulistas pelo CAP inúmeras
vezes e, penso eu, até campeões
brasileiros.
Essa
obsessão causava preocupação
ao Pai, Vovô Eduardo, que temia que
os estudos ficassem em segundo plano.
Vovô
Eduardo negociava na França patentes
de pisos asfálticos e para lá
fez algumas viagens. Ao observar o grau
de adiantamento da civilização
européia, então no auge, surgiu-lhe
a idéia de fazer seus filhos estudarem
na Europa, contribuindo assim para que também
se afastassem do esporte que tanto os ocupava.
Assim
é que partiram para a Europa, os
quatro irmãos, com a Mãe e
Tia Virginia.
Na
Bélgica, os jovens irmãos
fizeram o liceu, aprenderam a língua
francesa e se tornaram aptos a seguir os
cursos universitários.
A
invasão da Bélgica pelos alemães,
na Grande Guerra, obrigou-os a se transferir
para a França, Paris, onde foram
morar na Rue de Sèvres, metro Duroc,
no 3º andar de edifício que
ainda hoje existe e foi por mim fotografado.
Na
viagem de Bruxelas para Paris é famoso
o episódio dos alemães revistando
os passageiros e encontrando o “bichômetro”
da Tia Virginia.
Era um caderno com os resultados do jogo
do bicho desde sua criação
pelo Barão de Drumond, seu amigo.
Tia Virginia, extremante inteligente, intuira
as probabilidades de sorteio dos bichos
em função dos resultados anteriores.
Por isso estudava o retrospecto”,
para fazer a sua “fezinha”.
Era um caderno repleto de cifras e datas.
Foi difícil explicar para os “boches”que
não era um caderno de códigos
secretos, mas sim o bichômetro da
Tia Virgínia.
Enfim:
chegaram a Paris e as historias, jocosas
ou não, se sucedem.
“Madame a sonné? Non, Madame
Gonçalves’.
Perigueux, cidade da Aquitania, parada de
trem, passa a ser para os brasileiros: ‘Cuidado,
é perigoso’.
A Grosse Berta, canhão alemão
que atirava sobre Paris, Os táxis
da Batalha do Marne requisitados por Jofre,
eram fatos que Tia Virginia nos contava
com riqueza de detalhes.
Lembro ouvir o episódio da visita,
em plena guerra, com rígido racionamento,
do Nogueira, o famoso Taubaté, (por
ser oficial do navio Taubaté), que
vinha com carta de apresentação
do primo Flavio Guimarães.
O Nogueira, logo ao chegar à Rue
de Sèvres, pede que abram um champagne
para brindar a madrinha que aniversariava
no Brasil.
O Carlos Nogueira Pinto nunca mais largou
os Mendes Gonçalves, sobretudo Annibal
que venerava.
Que tempos difíceis, mas ricos de
experiência.
Quatro
jovens brasileiros, que em terra estranha
se aplicam, se esforçam, em meio
a dificuldades de toda ordem, em tempos
difíceis de guerra, estudam, se laureiam
com ótimos resultados e, cada um,
na carreira escolhida, representa um modelo,
um exemplo, para os descendentes.
ANNIBAL
MENDES GONÇALVES
Annibal
Depois do Bibi, dizem, o melhor atacante dos cinco irmãos. Foi
o Pelé da época
Cursou o
liceu na Bélgica e matriculou-se na escola de Engenharia de
Gand, mas não continuou o curso em virtude da guerra.
Transferiu-se
para Grénoble, onde cursou o Institut Electrotechnique,
formando-se em engenharia, em 1918.
Na
Bélgica havia deixado seu filho Roger, nascido em
novembro de 1914.
A
historia de Roger, Annibal e Claire, a pedido expresso deles, foi
sempre guardada discretamente pelos que dela tinham notícia e
só foi conhecida por nós filhos, quando surgiu o
anuncio no Estado de S. Paulo.
A
continuação é sabida. Representa para todos os
Gonçalves, brasileiros e belgas, os momentos mais bonitos da
historia familiar.
O
reencontro nos causa a maior emoção sempre que falamos
dele. E falamos sempre.
A ida de
Maria Victoria à Bélgica, as vindas de Roger, Georgette
e os sobrinhos, antes Thierry e depois Poulo, Jean-Jean et Alain, ao
Brasil, Gloria Zita e eu encontrando Roger em Berg, são
passagens inesquecíveis de nossas vidas.
O final
feliz da história nos enche de orgulho, pelo nosso Pai, por
nossa Mãe, prima de Roger, de grandeza incomparável,
grande dama que era, e também por todos nós Gonçalves,
belgas e brasileiros.
As
qualidades de meu Pai, como cidadão, intelectual, humanista,
pai, amigo, compõem a personalidade de quem, como ele, foi tão
respeitado, admirado, e querido, como poucos têm sido em suas
vidas.
Penso ser
interessante reproduzir alguns trechos da notícia que, com
auxílio do Álvaro Roberto, escrevi sobre Papai, quando
das comemorações do centenário de seu nascimento
em 4 de novembro de 1992.
Annibal
Mendes Gonçalves nasceu em Ribeirão Preto em 4 de
novembro de 1892, filho do Engenheiro Eduardo Mendes Gonçalves
e de Julieta Ramos Mendes Gonçalves.
Casou
com Alzira Ramos, sua prima, filha de Álvaro Teixeira Ramos e
Maria Joanna Diniz Ramos.
Na
mocidade, Annibal foi esportista entusiasta, praticando o football
que Charles Miller introduzira no Brasil.
Por
volta de 1905, com menos de 14 anos de idade, já jogava no
Paulistano, envergando a camisa 10, na posição de meia
esquerda.
Com
seus quatro irmãos, Luiz, Asdrúbal, Roberto e Amílcar,
formou na famosa linha de ataque dos irmãos Gonçalves
que tantas vitórias e campeonatos conquistou.
Estudante
na Bélgica sagrou-se campeão belga, pela Association
Athletique La Gantoise.
Cursou
o Lycee e iniciou os estudos de engenharia em Gand, transferindo-se
em 1914 para Grénoble, onde cursou uma das Grandes Ecoles, o
Institut Eletrotechnique, diplomando-se com distinção
em 1918.
Os
anos passados na Europa, em plena efervescência política
e cultural, durante e após a Grande Guerra e o surgimento das
novas idéias libertárias e as lutas pela justiça
social, influenciaram a formação do jovem Annibal, que
acompanhou de perto os movimentos que agitaram o velho continente.
Vivendo
os momentos dos intensos debates e das lutas que se travavam em toda
Europa, em razão das idéias socialistas e dos
movimentos de renovação cultural que enriqueceram essa
época, pode Annibal, a par de sólida formação
técnica-profissional, desenvolver apreciável cultura
humanística, traço marcante de sua personalidade.
Dotado
de prodigiosa memória, com senso de oportunidade e sem
pretensão, sabia fazer citações literárias
apropriadas que serviam de lição aos mais jovens que
se encantavam.
Os
autores clássicos franceses, as tragédias de Racine, as
comédias de Moliére, os épicos de Corneille para
ele não tinham segredo podendo dizê-los, muitos deles,
de cor.
. . .
Possuidor de acentuado espírito associativo, cedo se integrou
ao Instituto de Engenharia, entidade da qual passou a ser um dos
membros mais assíduos e atuantes.
No seu
famoso “symposium” fazia-se ouvir e debatia com as mais
proeminentes figuras da engenharia paulista, não só os
problemas técnicos de engenharia, como também as
questões políticas e sociais de toda ordem
. . .
são famosas suas quadrinhas que satirizavam os personagens e
os costumes políticos da época e que faziam a delicia
dos companheiros do symposium . . .
Ocupando
diversos cargos na Diretoria e no Conselho da entidade, chega em
1941, em memorável eleição, à Presidência
do Instituto, que exerceu com invulgar brilho em conturbado período
da 2ª. Guerra Mundial.
Como
cidadão atuante, desde os pródromos viveu a Revolução
Constitucionalista de 1932, dela participando como Major Engenheiro
do D.C.M, Departamento Central de Munições, onde se
fabricavam, em condições de extrema periculosidade,
obuses, granadas e artefatos bélicos para as forças
constitucionalistas,
Acompanhou
e apoiou, com entusiasmo, os movimentos políticos que
sensibilizaram o país e, tendo filhos universitários,
estimulou-os e aos seus colegas, a atuar nas manifestações
que se realizavam contra a ditadura de Getúlio, em prol da
democracia, e as que preconizavam a entrada do Brasil na guerra ao
lado dos Aliados.
Integrou
Annibal o Partido Constitucionalista, membro de seu Diretório
das Perdizes, distrito do qual foi Juiz de Paz.
Participou
da fundação da União Democrática Nacional
e durante toda sua vida manteve suas convicções
liberais e democráticas com alto espírito de
independência.
Não
olvidando sua formação universitária forjada na
Europa e em especial na França, fundou, com antigos
companheiros e colegas, entre os quais, Octávio Marcondes
Ferraz, dileto amigo de toda a vida, a Associação dos
Antigos Alunos das Escolas Francesas que em breve comemora seus 60
anos de existência.
Faleceu
em 5 de abril de 1960, aos 67 anos de idade.
Homem
realizado que foi adorado por todos que o cercavam. Generoso,
desprendido como poucos, de um magnetismo pessoal extraordinário,
era o que hoje se chamaria um ser carismático.
Com
freqüência, quando os amigos dos filhos chegavam à
sua casa e o encontravam, preferiam ficar em conversa com ele, a
saírem para as baladas.
Até
hoje os que o conheceram falam dele com carinho. Pela sua cultura,
pela sua simplicidade, pela sua generosidade, seja entre os amigos
dos filhos, na família ou fora dela, nos meios profissionais,
nas entidades de que fez parte, seu nome é lembrado com
admiração e saudade.
.Além
de inúmeros outros amigos, fiel e admirador foi o primo
Carlitos, filho do Tio Zé Maria, o engenheiro sanitarista.
Carlitos
– Carlos Mendes Gonçalves – Chegou a ser aprovado em
exames na Escola Politécnica, mas não seguiu o curso
por ter sido desenganado por um médico que, ao examiná-lo,
lhe deu poucos meses de vida.
Diante
dessa sentença Carlitos resolveu despedir-se da vida à
altura, caindo na mais desenfreada e desbragada boemia que durou,
imaginem, até a sua morte, com cerca de oitenta anos.
O
diagnóstico médico estava errado. Perdemos um
engenheiro, ganhamos um boêmio incorrigível.
Meu Pai
foi contratado pelo sogro do Carlitos, o Canuto, professor da
Academia de Direito, para construir sua casa no Pacaembu.
Entre as
cláusulas contratuais havia uma, singular, inusitada.
Construir um barracão com especificações
superiores às usuais, pois deveria servir para seu sogro
Carlitos desempenhar na obra a função de almoxarife.
Era uma maneira de dar uma ocupação ao Carlitos.
Meu Pai
cumpriu fielmente o contrato e fez construir um cômodo arejado,
dotado de água e luz, instalações sanitárias,
enfim com condições especiais, acima do padrão
normal.
O
Carlitos não teve dúvida, achou tão bom o
barraco que passou a residir na obra, convocando para ajudá-lo
nas lides domésticas mocinhas que se ocupavam da limpeza, da
cozinha e de outras tarefas óbvias.
Certo dia
o Carlitos resolveu oferecer, no barraco, uma feijoada para meu Pai e
alguns amigos do Instituto. Estive presente. Foi uma feijoada
deliciosa, regada com muitas batidas e servida em um aparelho
completo de porcelana das Índias Portuguesas!!!
Meu Pai
conseguiu salvar uma peça, hoje em meu poder: uma sopeira
magnífica. O resto talvez se tenha quebrado ou sido surrupiado
em uma das muitas reuniões festivas que o nosso Carlitos
oferecia no Pacaembu.
Grande
xará, o Carlitos, sempre com a palheta e a gravata borboleta.
É um dos vizinhos da Consolação.
Minha
Mãe, Alzirinha, prima irmã de Annibal foi a
companheira maravilhosa de meu Pai, durante quase 40 anos.
Quando
meu Pai morreu em 1960, Mamãe também morreu um pouco.
Um pouco não, muito.
Com 58
anos de idade a prima e mulher de Annibal, que o tratou com o maior
carinho e desvelo, só conseguiu superar em parte a dor quando
nasceu, dois meses depois, Maria Beatriz, filha da Beatriz a quem se
afeiçoou e se dedicou como só ela sabia.
Na
doença, meu Pai a chamava Alzirinha, Rhodine a boa enfermeira.
(Rhodine era um remédio muito anunciado no rádio).
Mamãe
era tímida e reservada, mas era fina, como costumava dizer;
tinha um espírito refinado e fazia intervenções
sempre apropriadas e pertinentes.
Discreta
nunca foi uma sogra na acepção pejorativa da palavra.
Estava à disposição sempre para ajudar, mas
nunca se intrometia na vida das noras e do genro.
Como boa
filha de paranaense apelidava com muita propriedade as pessoas, mas
sempre sem maldade. Um amigo nosso era o sacristão. Perfeita
denominação que lhe caia como uma luva.
Tinha
opiniões claras e positivas e admirava as pessoas de
convicções.
Como sua
sogra e tia Julieta, gostava de política e era UDN de coração.
Uma
atitude, independente e desassombrada, do Dr. Antônio, pai de
Gloria Zita, lhe fez dizer: ”parecia o Annibal” e, contra
os seus hábitos, retraída que era, foi visitá-lo
para testemunhar seu apoio.
Era esta
a prima e companheira de Annibal que o completava e que no episódio
do encontro de Roger e da família belga, ao ser perguntada se
ficaria magoada se recebêssemos o sobrinho belga, respondeu com
firmeza: “muito me admiraria se isso não ocorresse, não
seriam meus filhos se não o fizessem – por isso bem os
eduquei”.
Recebeu
Roger e a família belga mais do que com fidalguia, com amor e
muito se comoveu com o reencontro.
Como
diria o Roberto e dizemos todos nós: grande dama – que belos
ensinamentos nos transmitiu.
Éramos,
sempre fomos, uma família unida. Sob a égide de
Annibal, o líder dos Mendes Gonçalves – como diziam,
não os filhos, suspeitos, mas os sobrinhos - e de Alzirinha,
só podíamos
ter tido bons ensinamentos que, felizmente passamos para os nossos
filhos e sabemos que eles já estão transmitindo para os
nossos netos.
Entre as
figuras familiares ligadas a meu Pai aparece a Tia Virgínia,
nossa Titia, a sempre falada Tia Virgínia que morou
muitos anos conosco.
Suas
histórias dariam um romance, encheriam páginas e
páginas.
Extremamente
inteligente, desconfiada, “cavaquista”, brava, mas também,
boa, generosa, desprendida.
Vivia com
mesada de 700 mil reis que seu tio Francisco lhe mandava de Buenos
Aires. Mesada reduzida para 200 quando o tio faleceu.
Foi
casada, aos 21 anos, com um médico carioca, Dr.Loyola, que
faleceu antes de completar um ano de casamento.
Nunca
mais se casou e 70 anos depois quando falava do marido jurava-se que
havia morrido na véspera.
Tinha um
pequeno grande vicio: o jogo do bicho. Como dizia, era muito
“caipora”, raras vezes ganhava, mas quando isso acontecia, enchia
todos de presentes. A mim e ao Roberto costumava, contra a vontade de
meu Pai, “escorregar umas moedas” o que fazia às
escondidas.
Uma vez,
estando de “burros” como se dizia, estremecida com Mamãe,
jogou no bicho e ganhou. Esqueceu as desavenças e presenteou
minha Mãe que lhe disse: ”mas Dona Virgínia
está zangada comigo, como me dá um presente?”, ao
que ela respondeu: “esqueça, pois eu já esqueci”.
Dias mais
tarde, outro estremecimento, Titia vem a dizer: “Alzirinha não
queria o presente, mas bem que bifou”. Quando zangada
ficava toda formalizada, e à mesa, quando era servida, dizia:
“é o bastante”.
Tinha
paixão por meu Pai. Logo que ele se casou Titia foi morar com
o casal Quando meus Pais saiam a passeio se despediam da Tia
Virgínia, mas esta dizia sempre:”eu também vou”.
Imaginem Mamãe como ficava, querendo ter uns momentos a sós
com o marido.
Senhora
dos antigos provérbios portugueses: ”pés quentes,
cabeça fresca, ventre livre, ride-vos dos médicos”.
Era muito
habilidosa e criativa. Fazia tricô à perfeição,
inventou doces e bolos com sacarina para diabéticos. Mamãe
cozinhava muito bem; sei que aprendeu muito com a saudosa Tia
Virgínia, grande companheira de Vovó Julieta em Paris,
durante a guerra de 14.
Tia
Virgínia, que tanto marcou as nossas vidas, parece que ainda
está presente entre nós.
* 1953 +
1946, 93 anos de vida – repositório de tantas histórias
dos Mendes Gonçalves.
Outra
figura, não Mendes Gonçalves, mas presente em todas as
ocasiões: o imaginoso Tio Joaquim Moreira –
tio Joá, 25 anos mais moço do que sua mulher,
tia Ninete, irmã de Vovó Julieta; uma das mulheres mais
bonitas de seu tempo.
Tio Joá
sabia todos os aniversários e datas importantes da família
e não deixava de se manifestar e comparecer aos eventos,
sobretudo quando havia uns salgadinhos e doces que comia misturados,
dizendo que iam para a vala comum.
Um pouco
necrófilo, no bom sentido, era imprescindível para
resolver as formalidades necessárias aos sepultamentos. O
Comendador Moreira era conhecidíssimo nos cemitérios da
cidade.
Dotado de
portentosa imaginação contava historias de que tinha
sido testemunha ou delas participado, com uma riqueza de detalhes
impressionante.
Uma
delas: quando pilotou um avião, cujo comandante teria morrido
em pleno vôo (ainda bem que era um céu de brigadeiro).
A
história da mãe que deu à luz a um monstro e que
ele Joaquim trocou por um filho de mãe solteira. E muitas e
muitas outras histórias. . .
Era um
rico tipo e faz parte do nosso folclore familiar; sentimos muito sua
falta.
Eduardinho,
o nosso querido Eduardinho, primogênito do tio Luiz, meu
saudoso xará, que nunca faltou a todos da família e aos
amigos, nos bons e nos maus momentos.
Prestativo,
carinhoso, solidário, sempre pronto a auxiliar.
Como me
lembro de seus “socorros” ao meu Pai, com o carro atolado na
estrada em Mauá.
Outra
vez, quando, em plena passagem de ano, foi atender meu Pai que havia
esquecido as chaves de contacto dentro do carro trancado.
E quando
me levou à força ao hospital para expelir um cálculo
renal e me salvou, talvez, a vida.
Um
pensamento, um desejo ele adivinhava e satisfazia incontinenti. O
amigo preso a aparelhos ortopédicos que não entravam
pela porta da casa; Eduardinho demoliu a parede, reconstruindo-a logo
em seguida à entrada do amigo.
Deve
estar no céu ajudando outros a entrarem pela porta; se não
der, o xará derruba as paredes do Paraíso.
Papai
a todos soube congregar e com seu bom humor, sua simpatia, sua
cultura, seu “carisma”, permanece até hoje vivo em nossos
corações e meus olhos se enchem de lagrimas ao escrever
sobre ele e minha Mãe e todos os outros nestas singelas notas
sobre os Mendes Gonçalves.
São
Paulo, outono de 2006.
Carlos
Eduardo Mendes Gonçalves
Glossário
Droit
de conquête – direito por merecimento
Taquiner –
provocar, “tirar sarro”
Causeur - conversador
Vieillesse
– velhice
Fezinha – aposta no bicho Caipora – sem sorte
Funchal
– capital da Ilha da Madeira
Costaud -
grandalhão
Bifou- pegou, proveitou
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